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V.

Anomalisa (2015, dir. Charlie Kaufman e Duke Johnson)

Atualizado: 9 de dez. de 2022


Vejo Charlie Kaufman como um dos roteiristas/diretores mais sensíveis que conheço. Algo extremamente ligado à maneira que me identifico com seus personagens. Com Anomalisa não foi diferente. Acredito que a previsibilidade do ar melancólico dos seus personagens não seja carência de inovação. Charlie Kaufman segue uma linha e mesmo assim te surpreende. Anomalisa é um filme feito em stop motion, muito cuidadoso e detalhado. Tão bem feito que as emoções são passadas naturalmente, sem problemas, trazendo comoção. O personagem Michael Stone é um escritor que viaja para Cincinnati com intuito de dar uma palestra procedente de seu livro sobre como atender consumidores. Logo no começo do filme percebe-se o desânimo e a solidão de Michael. Também é possível perceber que os rostos de todos os outros seres têm a mesma feição. Eles também possuem a mesma voz. As pessoas são todas iguais e desinteressantes (ou seria a vida?). Michael se hospeda no Hotel Fregoli, sendo este nome uma referência à Sindrome de Fregoli: um transtorno psicológico em que o indivíduo acredita que diferentes pessoas, geralmente estranhos, são na verdade a mesma pessoa, geralmente alguém próximo a ele, só que disfarçada. Ao longo do filme nos deparamos com uma tentativa frustrada de Michael de se reaproximar de um antigo caso (com rosto e voz iguais ao restante das pessoas também). A cena em que eles se encontram para tentar conversar traz um certo desconforto, principalmente por parte da mulher que, claramente, guarda rancor. A tentativa de explicação dele é relacionada a um possível problema psicológico, como uma resposta pronta que buscasse reduzir ao máximo o assunto. No decorrer dessa breve conversa pequenos detalhes são filmados a fim de ilustrar o incômodo dos dois personagens, como Michael girando a taça de martini ao tentar pensar numa resposta ou a mulher se fechando ao colocar as mãos para dentro das mangas do casaco. O desligamento do piloto automático de Michael quanto a vida ocorre quando, de dentro de seu quarto, ele escuta uma voz distinta das outras pelo corredor. Num impulso, Michael vai atrás da voz e acaba encontrando Lisa. Ela possui o rosto diferente de todos os outros (com uma cicatriz que tenta esconder com o cabelo) e a voz também distinta. A partir daí Michael parece se agarrar ao que difere de tudo, ao que o faz sentir algo outra vez. A cena de Lisa cantando Girls Just Want To Have Fun é muito tocante, principalmente quando estamos acostumados a ouvir o mundo como Michael, com todas as vozes iguais. Dentro do quarto de hotel surge Anomalisa. Após Lisa explicar que se sente uma anomalia, Michael faz essa junção de palavras, o que deixa a moça muito contente. De fato, Lisa é uma anomalia; uma porta de saída de um mundo todo igual, um ser que difere de todos os outros. Michael enxerga essa saída e seu medo de perdê-la o faz sonhar com as pessoas de rostos iguais querendo separá-los. Nesse sonho, ao puxar Lisa para correr dos que querem acabar com o casal, uma cena muito parecida com uma de Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças ocorre. O corredor tendo as luzes apagadas à medida que o casal corre para fugir, como se o mundo - ou a memória, no caso de Brilho Eterno - estivesse desaparecendo atrás deles. Ao acordar do sonho, Michael parece acordar para a realidade que ele percebe. A agonia das manias e hábitos alheios, a perspectiva de uma vivência fadada ao tédio, a incapacidade de administrar o cotidiano sem se frustrar. É aí que Charlie Kaufman nos faz pensar sobre a vida e suas anomalias. Sobre a busca incessante que fazemos por elas para tentar ter estímulos diante do cotidiano. Sobre o “erro” de não resguardar essas anomalias porque, inevitavelmente, elas irão perder a autenticidade. Quando esse resguardo não acontece, acabamos nos sentindo como Michael: todos são iguais, a vida é sem graça.

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